Uma modalidade pouco tradicional de financiamento imobiliário tornou-se uma das apostas de incorporadoras de média e alta renda para lidar com o pesadelo dos distratos jargão do setor para o cancelamento da compra de imóveis novos. A proposta, que depende da boa vontade das instituições financeiras, é que os bancos antecipem o momento em que passam a financiar efetivamente o cliente final.
Usualmente, isso só acontece com o imóvel pronto, quando o comprador da unidade recebe as chaves. Até então, o banco financia apenas a construtora. É por isso que, no formato tradicional, quando o cliente desiste de uma compra antes de o imóvel ser entregue, as consequências desse cancelamento pesam no bolso da construtora, não das instituições financeiras.
A Tecnisa, por exemplo, prepara lançamentos com financiamento bancário durante a fase de obra de imóveis para a média renda, e Rodobens Negócios Imobiliários (RNI) e Even Construtora e Incorporadora avaliam a modalidade.
De parte das instituições financeiras, o Banco do Brasil (BB) diz que vai investir fortemente na operação. “Temos interesse estratégico no modelo, independentemente do cenário para as construtoras”, diz Raul Moreira, vice-presidente executivo e negócios de varejo. Mesmo nas linhas em que já está disponível, a procura pelo repasse é maior. Hoje, 44,9% dos contratos feitos com recursos da poupança são financiados na planta pelo BB. Em 2015 era metade disso, diz Hamilton Rodrigues da Silva, diretor de crédito imobiliário do banco.
O BB passará a oferecer o repasse antecipado na linha Pró-cotista. Essa é uma operação voltada para financiar imóveis com valor de até R$ 750 mil, e que usa o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) como fonte de recursos.
Embora seja uma linha antiga, foi só no último ano, com a escassez de recursos da poupança, que o Pró-cotista ganhou espaço na prateleira dos bancos. Neste ano, o BB liberou R$ 1 bilhão na linha, o que corresponde a uma alta de mais de 180% em relação a 2015. É, porém, um valor pequeno na comparação com as cifras que o crédito imobiliário como um todo movimenta. Nos seis primeiros meses do ano, foram concedidos R$ 51 bilhões em financiamento imobiliário para pessoas físicas e jurídicas.
Na precursora Caixa Econômica Federal, o financiamento durante a fase da obra representou 60% dos empréstimo a imóveis novos feitos com recursos da poupança no ano passado, o que correspondeu a cerca de R$ 12,9 bilhões. No âmbito do Minha Casa Minha Vida, praticamente 100% do que o banco financia é via repasse antecipado.
A própria Caixa admite que o produto é exitoso e que supera a capacidade do banco em oferecê-lo. “A gente não dá conta,ele já está bastante alavancado. Mas estamos atentos a ideias novas”, diz Teotônio Costa Rezende, diretor executivo de habitação da Caixa.
Do lado das incorporadoras, o repasse antecipado é visto como forma de contribuir para vendas.
Sem dizer qual a instituição financeira por trás do negócio, a Tecnisa está preparando quatro lançamentos residenciais na capital paulista e têm financiamentos com repasse na planta para três deles “prometidos, verbalmente,” por dois bancos, segundo o presidente da incorporadora, Meyer Nigri. Os projetos se enquadram justamente na linha Pró-cotista. “Não estão assinados ainda, mas não vejo nenhuma razão para não serem”, disse Nigri, ao comentar os resultados do segundo trimestre.
A Rodobens avalia a modalidade de repasse na planta para um de seus empreendimentos. Sem informar o nome do banco com o qual tem conversado nem o valor previsto para as unidades, Flávio Vidigal De Cápua, diretor financeiro e de relações com investidores, conta que se trata de projeto destinado à média renda.
O copresidente da Even Dany Muszkat diz esperar que a modalidade de repasses na planta cresça para todos os tipos de produtos. Por enquanto, a incorporadora fechou repasses antecipados para um empreendimento com unidades cujo valor médio é de R$ 300 mil com o BB. Os repasses ocorreram antes da matrícula individualizada, de acordo com Muszkat. A Even avalia ainda o repasse antecipado para produto já lançado, com tíquete médio de cerca de R$ 1 milhão.
“Há bancos tentando estruturar o repasse na planta para o lançamento, e outros, para alguns meses antes da entrega”, conta o presidente da Even. Ele reconhece, no entanto, que atualmente o volume em que a modalidade ocorre não é relevante, de acordo com Muszkat.
Rubens Menin, presidente da Abrainc, associação que representa as incorporadoras, avalia que esse formato de financiamento reduz o risco de crédito dos bancos, ao pulverizar a base de clientes, que deixa de ser concentrada nas incorporadoras e passa a ser de compradores finais. “É a bola do jogo”, afirma. Outra vantagem para as instituições financeiras é começar, mais cedo, a trabalhar outros produtos para os clientes.
Otimista, Menin diz que todos os bancos, incluindo os privados, teriam interesse no financiamento na planta com recursos da poupança. Essa não é exatamente a posição dos privados.
Fonte do setor diz, no entanto, que falta apetite, já que o risco de o banco ser responsabilizado por problemas no cronograma da obra é bem maior. “O produto libera as construtoras de uma série de problemas que a gente gostaria muito que resolvessem. Só achamos que não deveria ser via bancos nesse momento”, diz a fonte.
Gilberto Abreu, presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), diz que o repasse na planta não valeria a pena em imóveis a partir de R$ 400 mil. Segundo ele, o produto se bem operacionalizado, funciona bem. No entanto, a questão do ciclo de construção “está na mesa, continua aparecendo e não muda”.
Como o preço do imóvel é fixado no repasse, o produto funcionaria para imóveis de menor valor, cujo ciclo de construção é mais rápido como no Minha Casa Minha Vida. Já em imóveis mais caros, entregues em cerca de três ou quatro anos, embutir no preço a inflação do período deixaria o imóvel muito caro. “É uma conta difícil de o consumidor entender”, diz Abreu.
Abreu reconhece que BB e Caixa têm força para alavancar um produto cujo ponto de partida hoje é muito pequeno. Vê ainda como legítima a busca das incorporadas por alternativas para fugir dos distratos e estabelecer vínculos jurídicos mais fortes com os clientes. “Mas temos discutido que o financiamento na planta não resolve necessariamente todos os problemas.”
Fonte: Valor, 23 ago. 2016